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sábado, 16 de abril de 2011

Sem paladar



Queria te fazer um pedido. Posso?

Então, é o seguinte, nós vivemos muito tempo juntos e você sabe quase tudo de mim, não é mesmo?! Conhece meu silêncio quando me irrito, minhas risadas quase sempre escandalosas e, enfim, meu apetite voraz quando fico nervosa. Pois é, então... chegamos ao ponto. Seria abuso demais te pedir pra que viesse aqui cozinhar pra mim?  

Porque, sabe isso que você vê por fora? Essa casca dura, essa correria, essa independência não sei de quem? Sou eu. Transvestida de fortaleza, livre do seu toque, tátil, telepático e gustativo. Protegida das suas acusações naturais e das minhas conclusões machistas. É quando minha alma fica sem sal, escondida de quem se propõe temperá-la. Sério. Parece papo de Ana Maria Braga, mas é a mais pura verdade. Toda pessoa deve ter um propósito na vida. Não é isso que dizem por aí? A regra, nos dias de hoje, é dedicar-se à carreira profissional. Nada mais vale nosso empenho, nossas preocupações e, sobretudo, nossa fome. 

Mas parece que eu sempre aprendo errado. Enfrentava todos os dias com a quase certeza de no final deles poder te degustar. Textos dos alunos pra corrigir, seminário de psicologia, prova de economia, tudo isso existia no meu mundo, quando você ainda estava aqui, só que sem aquele gosto enferrujado de peso nas costas ou vontade de sumir. Eu pensava que tudo bem, faltava só algumas horas pra gente se ver e as preocupações ficarem pro café da manhã. Era bom assim, você dando um sabor a mais à minha vida, me inspirando a ser feliz, do início ao fim do dia, sem restrições.  

Só sei que o dia parecia ter mais sentido antes de você ir embora, ou pelo menos, eu tinha mais sentidos ao enfrentar o dia: paladar, visão, todos mais apurados. Meus olhos sofriam de tanta emoção. A cor azul, tão mais viva depois que te conheci, parecia querer me dizer algo; que eu não estava sozinha, talvez. Hoje ela se cala, esperando que eu dê o último suspiro e pare de pensar quando é que eu vou conhecer alguém com a sua forma bonita de pensar o amor. Nem as estrelas tenho paciência de olhar mais. Elas parecem foscas e meu pescoço já está cansado de curvar pra ver aquela beleza sem sentido. É só uma obra sem espectador. 

E sua mais alta gastronomia, onde mais eu vou achar? Das almôndegas congeladas que você me oferecia de madrugada, nunca mais comi, perdi meu paladar. Ninguém me convence de que você não levou todo o sabor delas junto da minha inspiração.

Não tenho mais nada pra comer, mais nada pra sentir, mais nada pra falar.  As palavras se foram, a fonte secou e eu esqueci nas suas mãos qualquer coisa de amor que eu pensei saber. Resolvi todos os dias dormir mais cedo pra suportar a angústia de não aceitar a falta que você me faz, mesmo sabendo que já está bem longe daqui. 

Por isso, eu só quero deixar um recado. Dizer que onde você estiver, não se preocupe. Com as estrelas pode ficar. Sumir com elas se quiser. Eu já não olho pro céu e nem faço mais tanta questão. Só me faça um favor, se puder. Me mande você pelos correios. Agora. Pra já. Porque do meu paladar, das minhas almôndegas e da minha inspiração, destes não abro mão e só você pode me dar.


Um comentário:

  1. Sentimentos associados à uma tara gastronômica???Não é àtoa que eu volto sempre aqui!!!Tava lendo umas coisas do nosso companheiro Jhonatan e comentei que o que gosto nos textos dele são os encaixes das palavras e a sensibilidade, agora dos seus...bem, eu acho bem direta, é temperada com um humorzinho cáustico que eu adoro, e a inteligencia como vc trata seus sentimentos!Quanto ao elogio que me fez...eu fiquei com vergonha!Heheheh!!!Eu fico lisonjeado quando pessoas que considero inteligentes gostam e comentam meus humildes textos...pois é, te considero inteligente e seu elogio tem muito peso!Abração!!!

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