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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Cães do inferno


O estrondo que a porta fez abafando os últimos passos rebolantes e raivosos que poderiam ser vistos da esquina do quarto foi o primeiro sinal de alerta captado por você, homem desligado e agora confuso. Sua mulher, a garotinha com quem fez planos e agora vivia um relacionamento estável lhe parece levemente insatisfeita com alguma coisa e você nem imagina o que possa ser. Você não entende, nunca estiveram tão bem. Há meses que não brigavam, inclusive.


E agora isso. O que pode ter acontecido? Seu cérebro é incapaz de captar qualquer informação que explique aquele repentino surto. Mas enfim, é a sua mulher. Você deixa a TV com um baita pesar de não conferir se o Dean e o Sam conseguirão escapar dos cães do inferno. Dirige-se à sala com lentidão de quem é homem e não entende os motivos de estar de pé, encostado no braço do sofá, perdendo o episódio em que aqueles cães rasgam toda a epiderme de Dean, olhando uma garota que provavelmente não dirá nada por horas; mas ainda assim fica ali plantado esperando o primeiro “então”.  Como previsto, silêncio.

Encolhida no sofá, sentindo dor sem tomar remédio, ela não grita, não se explica, não dá a mínima se o volume de duas televisões perdidas em meio à confusão consomem toda a energia da casa e do casal. Ela espera que você se retrate, mas você não sabe pelo quê se retratar. Nunca soube. Está tão cansado ultimamente que nem ânimo tem tido pra fazer qualquer coisa errada. Tava só lá no seu canto, cumprindo o papel de maridinho que não sai de frente da TV, é verdade, mas que também não trai. – Vai, mulher, dá pra parar de frescura e dizer logo que que ta pegando? – é o que você diz sem paciência pra acabar de vez com essa palhaçada.

É aí que pela ducentésima vez em vinte minutos desperdiçados, aqueles olhinhos vermelhos entram em atrito com o punho encharcado do moletom. Você se lembra de não ser mais o antigo garoto apaixonado que se faria de gasolina, dando extrema importância ao evento e alimentando a fuzarca da namorada, e sim o sujeito realista que tem de dormir cedo pra amanhã trabalhar. Por isso permanece em pé próximo ao sofá, se comportando como tal.

A primeira palavra sai. “Então...”. Daí pra frente pode preparar-se para ouvir três terços do dicionário inteiro daquela boca resmungona, pois hoje é sábado e ela trabalhou apenas meio expediente. Com certeza não conseguiu gastar as 20.000 palavras diárias que toda mulher tem direito. 

"- por que você tem agido assim? - Ela o interroga com o timbre de voz que mais parece um latido feroz e ferido - Fica aí calado, não presta atenção no que eu digo, finge que não me vê. Acha que eu não percebo? Tem tempos que eu to tentando fazer com que a gente volte a ser como antes, mas você não me ajuda. Você ta entendendo o que eu to te dizendo? – é óbvio que não, mas a fim de não complicar as coisas, balança a cabeça positivamente.

Ela continua. “Por exemplo, aquela época em que você assistia WWE. Com tão pouco tempo de intimidade, não me senti no direito de reclamar atenção e fui pra cozinha, cozinhar minhas aceitações do tipo 'o que posso fazer se sou trocada por uma seqüência de "voos do anjo" e golpes mortais na TV?'. Mas você veio. Me provou que eu sou mais importante que o John Senna ou aquele lá de máscara vermelha. Isso, Rey Mysterio. Você me surpreendeu, amor, me abraçou por trás e quis fazer lasanha. E apesar de só ter miojo, eu achei lindo." 

“Ta, talvez eu esteja falando bobagem. Querendo reviver aquela alteração nos batimentos cardíacos do início de nós dois. Até porque eu não tenho mais dezoito anos né? E desde sempre me avisaram que a vida não seria bem uma cena de cinema. Ah, quer saber? Volta pra cama, vai. Mais tarde chego lá. Você vai estar dormindo, então boa noite.”

Você obedece. Na Tv passa Som Brasil. Digire-se ao quarto em silêncio e a deixa na sala compartilhando com Cazuza seus pequenos sonhos de menina. Este daí, cantor esperto, não pode corresponder às fantasias apaixonadas, tumultuadas e quase impossíveis de sua mulher, por ser gay e morto, mas propositalmente a fez acreditar em amores movimentados com aquelas letras drogadas. 


Vendo isso como um fato, tomo pra mim a função de te dar duas notícias: ela é mulher e sua. Secretamente desejará um amor de tirar o fôlego até os últimos dias da sua vida. Siiim, ela te ama e espera que você seja o modelo de homem perfeito. O que obviamente você não pode ser, mas pode tentar. O mínimo que se espera é respeito, compreensão e diálogo para que o amor se estique. 


Entenderam, homens do meu Brasil? Vamos consertar essa bagunça aí. Não lotem minha caixa de e-mails, não façam fila na porta da minha casa, não me parem na rua pra perguntar, porque eu não tenho nada a ver com isso. Se querem resolver a situação, mexam-se. Vocês têm feras em casas. Utilizem seus conhecimentos televisivos adquiridos todo esse tempo para domar esse potencial temporário feroz. Afinal, não eram vocês mesmos que entendiam de cães do inferno?

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